A Arquitetura, por si, remete ao belo, ao prático e funcional. Mas planejar um ambiente é também representar a multidisciplinariedade e reconectar as pessoas com os espaços e as próprias limitações. No Brasil, onde 45 milhões de pessoas possuem algum tipo de deficiência física, os novos requisitos para o planejamento dos espaços acessíveis a todos é assunto recorrente.
E este será o tema da primeira edição do criativo projeto de qualificação profissional da AAI Brasil/RS, o vivênciAAI, no dia 27 de junho, em Porto Alegre. Com palestra, oficina e espetáculo teatral, os participantes, arquitetos e urbanistas e interessados do setor, vão refletir e discutir sobre a Acessibilidade na Arquitetura. Clique aqui e saiba mais sobre o evento. As inscrições são gratuitas para arquitetos e urbanistas e estudantes da área, e devem ser feitas até 24 de junho.
No encerramento da programação do vivênciAAI, a peça teatral Ícaro, de Luciano Mallmann, deverá emocionar os participantes. O ator gaúcho criou um monólogo a partir da própria experiência como cadeirante e os relatos de pessoas que convivem com as consequências de uma lesão medular. No texto simples, direto e sensível, Luciano Mallmann interpreta os depoimentos de pessoas cadeirantes ficcionais. Mas todos os diálogos são construídos a partir das experiências e percepções sobre a deficiência.
Teatro documental
Luciano buscou a linha teatro documental, misturando realidade e ficção para tratar da própria vida, que mudou drasticamente numa tarde de 2004 quando fazia um treino de acrobacia aérea em tecido na Escola Nacional de Circo, no Rio de Janeiro. Uma queda de ponta cabeça de uma altura de quatro metros gerou uma lesão na medula. Luciano perdeu o movimento das pernas e parte da força nos braços e na mão direita. Esse capítulo da história da vida do ator transformou a sua rotina, e ele transformou em teatro a vivência de uma nova realidade.
Luciano conversou com a AAI Digital sobre o diálogo que mantém com plateia, sobre a deficiência física, sobre o que mudou nas relações com a sociedade, sobre como deve ser o olhar do arquiteto para os espaços e sobre como Ícaro tem o papel de estimular e incentivar um novo conceito na dramaturgia no Rio Grande do Sul.
Confira a entrevista com Luciano Mallmann:
AAI Digital – Quando você passou a usar cadeira de rodas, quais foram as dificuldades em relação à mobilidade no dia a dia?
Luciano Mallmann – Quando eu passei a usar cadeira de rodas, me dei conta que o meu tempo seria diferente. O tempo de uma pessoa que usa cadeira de rodas é diferente de pessoa que não usa para atravessar a rua. Existe muita dificuldade de acessibilidade aos lugares. Eu passei a entender que um mínimo degrau seria um princípio para mim, um mínimo desnível na calçada seria uma grande dificuldade para mim. Eu também passei a exercitar a empatia muito mais que antes porque, agora, eu conseguia me colocar não só no lugar das pessoas que são cadeirantes como também das pessoas que não têm visão para ficar atento à falta de acessibilidade em geral que existe na cidade.
Eu também passei a exercitar a empatia muito mais que antes.
AAI Digital – Você precisou realizar adaptações no espaço onde você morava?
Luciano Mallmann – Quando eu me acidentei, morava no Rio de Janeiro, em um prédio que não tinha elevador e meu apartamento ficava no quarto andar. Eu não voltei mais no prédio. Fizeram a mudança para mim porque eu voltei a morar em Porto Alegre logo depois. Nunca mais voltei naquele apartamento em que eu morava. Aqui eu teria todo apoio da minha família porque era uma nova mudança na minha vida, bem drástica.
Eu aluguei um apartamento em Porto Alegre e o banheiro não tinha acesso para mim. Eu tive que fazer uma reforma pequena para poder tirar o degrau que tinha na entrada do box e mudar a posição da privada para que pudesse encaixar a minha cadeira. Nas portas eu passava; elas tinham uma largura boa por ser um apartamento antigo. Os imóveis mais novos têm a porta do banheiro mais estreita, e eu não entendo isso. Na portaria do prédio, fizeram uma rampa para eu poder subir o degrau.
AAI Digital – Você deixou de frequentar algum lugar em função das barreiras arquitetônicas?
Luciano Mallmann – Sim. Eu deixei de frequentar vários lugares que não têm acessibilidade para mim. Quando eu preciso muito ir a um lugar que não tem acessibilidade e eu faço muita questão de assistir alguma coisa que está acontecendo lá, eu vou e digo para as pessoas darem um jeito e me carregarem. Eu não concordo com isso porque é um risco que a gente corre e, de certa forma, é um constrangimento.
Eu evito frequentar lugares que não têm acessibilidade porque não compactuo com lugares que não têm acessibilidade.
AAI Digital – E nas ruas? Quais são as principais dificuldades?
Luciano – Nem toda esquina tem rampa e quando tem são muito inclinadas, o que torna impossível tocar a cadeira e subir sozinho. As calçadas são todas esburacadas, cheias de desníveis e é bem difícil transitar. Esse problema nas calçadas não é só em Porto Alegre, mas em grande parte das cidades do Brasil. Eu já viajei bastante com a minha peça por várias capitais e cidades aqui no país e está longe da perfeição. Perfeição é difícil, mas está longe de uma condição pelo menos adequada para que a gente possa circular sem precisar de ajuda.
AAI Digital – Nestes 15 anos como cadeirante, quais foram os momentos mais difíceis?
Luciano Mallmann – Eu acredito que a gente tem uma essência que permanece e que mantemos independente do que acontece na vida. Eu sempre digo isso: “você pode ganhar na loteria, mas se você for uma pessoa deprimida vai passar um tempo e você vai voltar a ser deprimido”. Mesma coisa eu. Nunca tive tendência a ter depressão. É claro que foi uma mudança drástica na minha vida. Mudei de cidade. Eu vim morar em Porto Alegre e isso, de certa forma, até me ajudou porque eu recomecei em outro lugar.
Eu deixei de trabalhar com arte porque, na época, eu achava que, com a cadeira de rodas, eu não conseguiria. E que seria uma eterna frustração estar em contato com aquilo que eu fazia com limitações no meu corpo e a dificuldade que o tempo da gente, que muda. Não é tão simples eu decidir fazer uma viagem. Eu tenho que me planejar, tenho que me organizar para conferir se todos os lugares têm acesso. O tempo mudou, inclusive para me deslocar.
Tem que exercitar a paciência e tem que ter sabedoria para poder lidar com isso.
AAI Digital – E, passados estes anos, você percebe uma melhora ou maior atenção dos profissionais / autoridades / pessoas em geral em relação à acessibilidade arquitetônica?
Luciano Mallmann – Eu acho que se fala muito em acessibilidade e inclusão. Nos tempos que a gente vive hoje, se tem alguém que fala sobre esse tema rola uma atenção. Mas agora, por exemplo, o Conselho da Pessoa com Deficiência foi temporariamente excluído. Isso é um grande descaso com as pessoas que têm algum tipo de deficiência. Eu percebo que prédios novos e tudo que está sendo construído têm certo cuidado para ter acessibilidade para os cadeirantes. Mas a calçada aqui na frente da minha casa nunca teve uma mudança para corrigir e facilitar para gente. Eu acho que isso é geral.
AAI Digital – Qual o impacto da barreira arquitetônica para um cadeirante?
Luciano Mallmann– Total impacto. Uma barreira arquitetônica é um empecilho. É frustrante você chegar num lugar, num aniversário, organizado num bar e você não consegue entrar. E se conseguir, não pode ir no banheiro porque não tem acesso ou uma mesa é muita baixa e não consegue encaixar uma cadeira para ter uma refeição ‘de boa’. A disposição dos móveis também é complicada porque é tudo meio apertado.
O impacto é o pior possível, de forma que está te impossibilitando de desfrutar dos direitos que o mundo oferece.
AAI Digital – Qual mensagem você deixaria para os arquitetos em relação ao planejamento dos espaços para pessoas com mobilidade reduzida?
Luciano Mallmann – Em primeiro lugar, exercitar a empatia. Colocar-se no lugar das pessoas e tentar imaginar o que deveria ter acessibilidade para poder planejar alguma coisa que poderia dar acesso para essa pessoa. Cada deficiência é de um jeito, cada necessidade e limitação é muito específica. Cada caso é um caso. Eu tenho uma lesão medular e tem vários níveis e diversos níveis de necessidades para as pessoas. Eu acho que tem que conversar com a pessoa para quem tu estás trabalhando, para saber se a pessoa tem alguma deficiência e ouvir muito as necessidades dela. Se for para um espaço público, ouvir o máximo de pessoas possível e sempre chamar alguém que possa verificar, dar uma atenção, um conselho e uma assessoria nesse sentido.
AAI Digital – Sobre a sua rotina, você mora sozinho? Precisa de ajuda para alguma tarefa?
Luciano Mallmann – Eu moro sozinho. Tenho uma faxineira que vem para cozinhar e lavar roupa. Mas a maioria das coisas eu consigo fazer e dar conta. Eu trabalho em casa e faço toda parte de planejamento desse espetáculo que está em cartaz. Eu já estou há dois anos com essa peça e viajando para todos os lugares, e toda parte administrativa eu faço em casa. Quando é viagem, vou sozinho porque eu preciso só de um técnico que opera luz e som. Ele fica em Campinas (SP) e me encontra nos lugares onde eu vou apresentar. Aqui, em Porto Alegre, eu tenho um técnico que trabalha comigo.
AAI Digital – Você é formado em Publicidade, certo? Trabalha nesta área atualmente?
Luciano – Sou formado em Publicidade, mas não trabalho nessa área, nem em agência, nem veículo de comunicação e nem marketing. Eu só estou trabalhando como ator e eu utilizo os conhecimentos em publicidade para trabalhar essa área administrativa de venda, formatação e material de divulgação do espetáculo.
AAI Digital – Como ator, quais são seus atuais projetos?
Luciano Mallmann – Estou com esse espetáculo, Ícaro, um monólogo que eu escrevi e interpreto vários personagens que, como eu, tiveram lesão medular. Eu pretendo continuar com ele por muito tempo. Vai ser meu repertório de ator. Sempre que eu conseguir ‘vender’, sempre que alguém quiser assistir, eu tenho ele na manga. Eu pretendo continuar trabalhando como ator. Espero que me chamem para alguns projetos em que eu interprete personagens que, mesmo estando na cadeira de rodas, o texto não precise ficar evidenciando e falando sobre a deficiência. Eu acho que a inclusão vai acontecer quando pessoas com deficiência interpretando personagens que não estejam necessariamente tratando desse tema, mas levando uma vida normal.
AAI Digital – Como surgiu a ideia da peça Ícaro?
Luciano Mallmann – A ideia da peça surgiu de uma grande necessidade de eu voltar a trabalhar com arte. Eu tinha claro na minha cabeça que, agora com a cadeira de rodas, seria muito mais difícil alguém me chamar para algum trabalho e que para eu passar num teste teria que ser um personagem muito específico. Então, eu pensei que se eu não produzisse a minha história eu não voltaria a trabalhar. Seria mais difícil eu voltar a trabalhar.
Eu sempre gostei de teatro documentário, essa linha que mistura realidade e ficção. Na verdade, quando termina a peça, tu não sabes o que é verdade ou ficção, e isso é o que menos interessa, mas o que foi transmitido no espetáculo. Eu pensei em escrever alguma coisa nesse sentido. Passei a escrever vários depoimentos ficcionais de personagens que não existem e onde eu misturo minha vida com histórias de pessoas que eu conheci ao longo desse período de 15 anos que estou na cadeira de rodas e, também, com muita ficção no meio. Assim, fui escrevendo e lendo para meus amigos e eles gostando e me incentivando a produzir algo para o teatro.
AAI Digital – Quais os principais dramas apontados nos relatos?
Luciano – Os dramas que eu abordo são dos relacionamentos humanos entre pais e filhos, amorosos, sobre a dificuldade de uma gravidez de uma pessoa que está na cadeira de rodas. Eu falo sobre preconceito, resiliência. Tudo isso está no espetáculo.
AAI Digital – Como tem sido a reação das pessoas?
Luciano Mallmann – A reação das pessoas tem sido a melhor possível. Eu sabia que a peça seria muito bem recebida pelo tema e pela forma como estou abordando, que não tem nada de ‘coitadismo’ ou militância. O que acontece na peça é que eu abordo os temas que são comuns a todo mundo. As pessoas, mesmo não tendo uma deficiência ou estando em uma cadeira de rodas, acabam se identificando com o que está sendo contado e se identificando com pessoas que estão na cadeira de rodas.
Eu acho que esse é o grande motivo que faz as pessoas gostarem da peça. Além da identificação, há quebra dos paradigmas na forma como a deficiência é vista quando passam a se dar conta de que, à frente de uma deficiência, existe uma pessoa. Eu acho que esse é grande ganho de toda história. A peça tem recebido, de todos os lugares onde vou e dos diferentes públicos, muita receptividade. Recebo depoimentos de pessoas pelas redes sociais falando que gostaram da peça, se identificaram, e me falando coisas ‘super’ bonitas. Isso, para mim, que sou ator, é uma maravilha porque estou fazendo um espetáculo que é transformador.
Serviço:
vivênciAAI – Arquitetura acessível
Data: 27 de junho
Das 13h30 às 20h
Local: IMED – Rua Dona Laura 1020 – Bairro Mont’Serrat – Porto Alegre/RS
Inscrições (até 24/06)
www.sympla.com.br/AAIBrasilRS
Gratuito para arquitetos e urbanistas e estudantes da área
Demais interessados – R$ 50,00 + R$ 5,00 (taxa)
Nas imagens, cenas da peça Ícaro, de Luciano Mallmann.
Fotos: Fernanda Chemale | Divulgação
Leia mais:
Congresso Mundial de Arquitetos, UIA 2020 RIO, está com inscrições abertas
Arte, música e Arquitetura em composição inusitada
Arquitetura acessível é o tema da primeira edição do vivênciAAI