Nas travessas de uma cidade centenária da Alemanha, os cafés, os jardins e as academias de arte reuniam uma efervescente movimentação de músicos, poetas e pintores. Nas partituras, as notas ditavam o ritmo de Dresden, a cidade que por mais de dois séculos traduziu em letra e prosa a expressão da cultura alemã. Contudo, tudo ficou para trás às 21h30 de 13 de fevereiro de 1945. Um intenso e cruel bombardeio durante a Segunda Guerra Mundial eliminou qualquer vestígio da referência universal da cultura.
O lançamento de 1.478 bombas explosivas e mais 1.182 incendiárias decretavam o fim de tudo que representava vida e arte. Era o fim trágico de uma cidade, que deixou marcas em cada canto, mas que não determinou a extinção da vocação de Dresden. A passagem do tempo contribuiu para que as marcas da tragédia dessem lugar à criatividade em sua mais elevada potência. E espaços de circulação totalmente sem graça foram sendo transformados em centros de arte. Há mais de meio século, daquela noite que a destruiu, a cidade da cultura ressurgiu para o futuro.
É na capital da Saxônia, no meio do caminho entre Berlim e Praga, que um bairro de clima boêmio tem atraído os olhares do mundo para a expressão cultural de Dresden: Äußere Neustadt, repleto de bares, restaurantes e galerias de arte. E no centro do bairro está o criativo Kunsthof-passage, um complexo de cinco prédios comerciais com pátio central, onde estão instaladas cafeterias, lojas, ateliês e estúdios de música. O espaço foi ‘inaugurado’ há 20 anos e oferece, nas fachadas dos prédios, o grande espetáculo: instalações criadas por artistas locais, residentes do entorno.
O primeiro a ser criado foi em 1997, pelas mãos da artista Viola Schöpe. Ela foi contrata pelo proprietário do condomínio para desejava reproduzir algo como as estadias na Espanha, sob a inspiração da arte de Gaudí e de Friedensreich Hundertwasser. Viola adaptou as ideias e criou o que veio a ser chamado de Hof der Fabelwesen (Pátio das criaturas míticas), onde criaturas e figuras fantasiosas decoram a fachada na instalação criada por ela. Trata-se de um grande mosaico, com 900 metros quadrados, integrando pedra, esculturas de metal e pintura. Um dos lados exibe a representação do rio da vida. Na face oposta estão os elementos cósmicos, as estrelas, cometas e tudo aquilo que une o universo. Os demais projetos foram sendo desenvolvidos mais tarde, sob a mesma vibração.
No ‘Pátio de Elementos’ (Hof der Elemente), a chuva é o elemento principal. Ela produz sons de uma peculiar sinfonia ao escoar pela instalação produzida com drenos, calhas e funis pelos artistas Anette Paul, Rossner eAndré Tempel. A engenhoca realmente produz música. A ideia do gigante instrumento musical ao ar livre surgiu quando Anette vivia em São Petersburgo, na Rússia, e encantava-se com o som produzido pelo impacto da água da chuva nas janelas. Por isso, em Dresden, o ‘tempo feio’ está longe de ser um problema, porque a chuva produz um espetáculo.
Por falar em show, o Kunsthof-passage é um verdadeiro palco. Além do edifício ‘da música’, há o prédio ‘das luzes’, ‘dos animais’, ‘das criaturas míticas’ e ‘da metamorfose’. No Hof des Lichts, o Pátio da Luz, o tom amarelo da fachada evidencia as chapas metálicas que refletem intensamente os raios solares e representam a luz. No edifício de cor verde, diversos tipos de animais ‘escalam’ a fachada. É o Hof der Tiere (Fazenda dos Animais).
Já a fachada do Hof der Metamorphosen(Pátio das Metamorfoses) apresenta seis pesados ‘escudos’ de 15 metros de comprimento que guardam um segredo que só é revelado ao fim do dia. Os 24 papéis pendurados em estruturas de metal nas paredes exteriores mudam a estrutura do edifício à noite, iluminados por feixes de fibras de vidro, e valem uma olhada com precisão. Metade deles foi mergulhada em óleo de linhaça e exposta ao clima, para a transformação em longo prazo. A instalação é assinada pela artista Arend Zwicker. A ideia é que o espectador observe a fachada e perceba uma transformação. E é assim, diante dessas obras inusitadas e repletas de engenhocas que Dresden aos poucos pede licença poética e volta ao centro da história da arte do mundo.
Fotos: Cortesia Follow The Colours